Motivação:

Quando decidimos estabelecer que este projeto fosse acessível ao grande público da internet, sabíamos da quantidade de pessoas que poderíamos atingir. Dizemos poderíamos porque somos cautelosos e humildes, uma vez que certamente reconhecemos a gigantesca oferta: sites de literatura de inquestionável qualidade pululam no vale fértil das redes sociais, e outros, não tão preocupados com o selo qualitativo, seguem logo atrás na semeadura das letras nesta terra de ninguém - não em menor número, paradoxalmente. A literatura, por incrível que pareça, se alastra não como uma bela cultura vegetal, como uma bisonha erva daninha, porém, procurando absorver fama mineral que alimente o ego seco da raiz. Eis no que diverge o nosso trabalho e o desta horda de escritores que têm aterrorizado os dias com seus autógrafos, espadas e lanças: não necessitamos de visibilidade. Não faz a mínima diferença o número de pessoas que visualizará este blog, faz diferença apenas o fato dele existir. A intenção é ofertar um registro fiel dos dias de um homem cuja existência foi dedicada à busca da beleza, da suavidade, da paz, do amor em todas as suas incontáveis formas, ainda que tenha sido o conflito a via pela qual viajou durante a maior parte do tempo. Venkon Sinjoro Serena reconhece em si mesmo uma expressão ímpar na literatura, ainda que este fato não mereça nem celebração nem repúdio: abre um caminho entre as matas, uma faca de prata nas mãos evoca luz, eis uma estrada! Ali segue o poeta, sozinho...

v. s. s.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Eu tinha os remos
Nas mãos bem firmes, entretanto
Não era isso que me garantia
Controlar a barca:
Larguei os remos
Na água.

Deixo, aqui vai:
Deixo que o rio
Com seu curso lindo
Transporte a barca.
Aqui vai: não me importo.
Eis: não me importo, confio.

Na pior das hipóteses
Vou cair de uma cachoeira
Desde muito alto até um olho
D'água. Não me importo.
O que pode ser pior
Do que tentar remar
E ver que a barca
É incontrolável?

Lutar contra a correnteza suprema
Transforma a vida em um pesadelo,
Remarás até a exaustão de todo músculo,
Não sairás do lugar... Não, não quero isso
- Deito os remos n'água,
Deito meu corpo para trás,
Deito o meu ser: vou me perder
Olhando estrelas enquanto a barca
Desce o rio, vou cruzar as mãos
Atrás da cabeça e rir antes
De fechar os olhos: me interessa
Muito mais o sonho. Fecho os olhos.

A escuridão
Me conduz ao reflexo do espelho,
Eu mesmo sou negro por dentro
Quando calo... Lembro:

Eu tinha os remos
Nas mãos
Bem firmes, mas
Ficaram pra trás.
O curso do rio
É gentil, me deixo,
Me deixo embalar:

Durmo bem,

Nada importa.
Sou feliz de fato...

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Uma cabeça sábia
Que caia pela guilhotina
Disse que nada se cria:
Onde está o nascimento, então?
Uma cabeça sábia
Que caia pela guilhotina
Disse que nada se perde:
Onde está a morte, então?
Uma cabeça sábia
Que caia pela guilhotina
Disse que tudo se transforma:
Eis tu e eu e tudo.

Homem altivo, terra argilosa,
Árvores antigas no bosque, insetos
Ainda desconhecidos pela ciência,
Vento e suas partículas indomáveis,
Maciez da pele dos cães,
Glória de estar vivo:
O próprio tempo é ser
E todo o ser é tempo. O que morre?
Aquilo que não nasce?

Nada morre, nada nasce. Perceber
Isto é estar livre de nascer e morrer,
Perceber isto é viver de fato.
Usa teu faro, confia nele!
Há cheiro de benevolência e serenidade
Desde o começo do que não começou...

Eu que agora
Confio e uso a razão acima da razão
Não espero e também não nego,
Não desejo, porém não afasto,
Vivo de fato sem viver:

E cada pétala ou folha que cai
Das copas às águas são arrastadas
Pelo rio onde não se constroem represas,
Pois que sempre desemboca no grande
Mar misterioso e profundo
No qual nadamos

- Também nós,
Sem saber, somos
Arrastados...

terça-feira, 22 de julho de 2014

Os últimos jasmins vivos
Já no começo do outono
Sabem que não tem muito
Tempo adiante. Sabem:
Ainda assim, gozam. Não
Reclamam o fim do calor
Que lhes sustentava os corpos,
Não agonizam o momento seguinte,
O futuro tem algo de incerto
- Eis aqui a beleza do futuro!
Gozam! Gozam tanto e tão profundo,
Tanto a morte que virá quanto a vida
Que vai, gozam tanto e tão profundo
Que se desfazem todos em cheiros
Obscenamente doces, cheiros
Que envenenam os caminhos,
E quem passa
Sequer pensa...

Gozam tanto e tão profundo
Que me contagiam com seus exemplos:
Já no começo do outono fenecem,
Mas se deitam ao chão de gramas verdes
Com leveza tamanha
Que até diante dos meus olhos
A morte perde a importância.
Obrigado por este ensinamento:
Morrer em paz a cada segundo,
Mas exalar beleza como quem suspira
Ou se espreguiça ou faz algo profundamente
Natural... Os últimos jasmins vivos
No começo do outono são saudosos,
É claro, do mormaço estupendo e forte
Do verão que os pariu: não reclamam, gozam.

Eis eu como os jasmins vivos,
A saudade que sinto não é dor:
É uma oração silenciosa e grata
- Embeleza a minha vida como um campo
Coberto de pétalas brancas.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Eu acabei
Pensando que a melhor forma
De viver fosse viver
Da forma que se quer,
Fazendo apenas o que se quer,
Adiando pra depois qualquer tudo,
Deixando passar os dias a esmo,
Não me preocupando, aliás...

Então, em um encontro casual,
Enquanto eu supunha metafisicamente
Não ter mais nada para aprender nesta
Vida, uma amiga minha me contou:
Amanhã é um sonho mistificado,
Amanhã é uma névoa cobrindo o mar,
Amanhã é um ovo que ainda não foi posto,
Por isso não pode chocar.

Vivemos apenas
Neste local absurdo e barulhento
Chamado presente perfeito, não mais
Nem menos do que perfeito, perfeito...
Quando perceberes a perfeição,
Rirás.

Amiga, amada: ainda penso, porém,
Que a melhor forma de viver é adiando
O mundo do meu peito, penso que a melhor
Forma de viver é como um animal cheio
De emoções e vazio de pensamentos, penso,
Contudo, sem sonhar – de certa forma,
Mataste o sonho em mim tão beneficamente
Que acordei assustado para um sonho ainda maior
Que os homens astutos chamam de agora.
De quantos agoras será feita, amiga, amada,
Esta nossa possibilidade absurda
De existir?

Não são poucas as cenas gigantescamente melodramáticas
Que me vem à memória. Ter a força necessária para abandonar
Gloriosamente esta vida é uma bênção guardada para poucos:
Não estou entre eles – amo meu destino, ainda...

Eu acabei pensando, concluí: a melhor forma de viver
É viver da forma que se quer.
A raça
Humana não
Sabe, supõe.
Saber é a nossa
Última qualidade,
Saber é o que fazemos
Menos. Não sabemos:
O tamanho das matas,
A origem dos ventos,
O nome da luz e as variações
Das cores das frutas entre o verde
E o maduro, incapazes de conhecer
O sacerdócio eterno das árvores,
A comunhão massiva das flores
Nos campos quando passa inverno
E vem primavera, enfim.

Supomos, apenas, que haja velocidade,
O movimento talvez seja uma ilusão,
Não sabemos nada sobre os destinos da alma,
Sobre o humor dos cães, sobre a solidão das baratas,
O nome do cheiro que fica dentro
Da geladeira quando estragam
Ovos que poderiam ter sido
Galinhas e galos, mas não
O foram e o porquê
Não sabemos.

De nós, de nós mesmos também sabemos pouco ou nada,
Também de nós não sabemos das coisas que poderiam ter
Sido, contudo não foram. Não sabemos, mas aqui há uma diferença:
Podemos saber. A pesquisa que se faz sobre si mesmo é
A mais importante pesquisa que faz
O homem sobre a realidade. Eis a ciência: saber a si
Mesmo.

Além, te despreocupa em tentar conhecer o incognoscível,
Nomear o inominável... Não há motivos pra esta disputa
Entre eu e eu. Quero mais é sentir: no sentimento repousa a ciência
Mais tenra, mais amável que pode haver.

De que adianta saber que o arco-íris se forma em função
Dos diamantes invisíveis dos céus fecundados pela luz rápida e alegre,
Se dentro de ti esta alegria não se propaga? Deixa a mesma luz te invadir,
Contempla primeiro o arco-íris dentro de ti: o saberás de fato, enfim.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Quantos pássaros passaram
Por um homem distraído
Que pensava em outras coisas
Quaisquer e não se deu conta
Quantos pássaros passaram?

Há uma memória anterior
Às memórias todas
Das pessoas todas
Que tem memória:
Quantos pássaros passaram
Não é um número perdido,
Todos os números são exatos,
Todos os números sabem bem
Onde estão – quantos pássaros
Passaram é a mesma coisa
Que vi escondido em um jardim
Quando eu era pequeno
E já não me lembro... Quantos
Pássaros passaram é as coisas
Que eu disse e não recordo,
É o que comi na manhã
De doze de janeiro de mil
Novecentos e noventa e oito
E não recordo. São as lembranças
Que não tenho, mas tenho:
Estão elas guardadas todas
Em um lugar muito bonito
Que é a onisciência da vida.

Quantos pássaros passaram
E eu não me dei conta?
Simplesmente não sei.
Esta é a poesia mais madura
Que eu já te escrevi... Tens tu
Os teus pássaros também, os que tu
Te lembras, os que tu não te recordas...

A questão agora, meu amor, meu primeiro
Amor consumado, não são os pássaros
Que recordamos ou aqueles que esquecemos:
Importa somente a revoada toda, toda ela
Um conjunto, pura, indomada, escrita à mão
Por alguém que sabe de todos os destinos
Migratórios das memórias...
Escrevo estas poesias
Todas: isto é tudo. Não
Há um mísero propósito
Por trás deste ato inconvencional.
Eu passarei
Em breve, elas passarão
Depois.

Mesmo que não passássemos,
Que adianta? Há gente demais!
Há muita voz e pouco ouvido.
Talvez sobre egoísmo
Em meus sonhos, mas qual o sonho
Que não se principia
No individual?

Não, não é possível, é loucura, absurdo:
Em algum lugar isto há de ficar
Gravado como que em uma memória,
Desenhado como que em um quadro,
Audível como que em um uma canção!
Deus! Deus incerto é a resposta!
Deus extraterrestre, deus apóstata,
Absurda, absurda toda esta comoção
De átomos e vibrações minúsculas
E luz solar tenra sobre a pele
Em uma manhã em que se sente
Preguiça e continuar na cama pelo resto
Do dia parece uma possibilidade magnífica.

Escrevo estas poesias todas: mais uma
Agora, mas isto é tudo. Deixar completamente
De lado as perguntas tolas que faço: eis que tive
Uma boa ideia finalmente: Vou viver.
Vou viver! É o que sempre digo: vida!
Executar a vida é muito mais difícil
Do que pronunciar a vida, porém...

Escrevo estas poesias... Não vou reclamar.
Talvez seja a única função
Que eu possa cumprir por aqui... De resto...
Onde me encaixo? Isto é tão natural!

Vou latir! Vou latir, sou um cão vagabundo:
Escrevo - isto é tão natural!
O azul profundo
Do céu é uma torre
Em um templo: ando
Pelas manhãs claras
De sol como quem anda
Entre quatro paredes
De alvo mármore.

A cada passo que dou
Me questiono um pouco mais
- Não há nada para o pensamento
Como uma manhã fresca de inverno
Quando é ensolarado o momento:
O que existe do lado de fora
Do tudo? Outra realidade além
Da realidade?

Os dias são templos claros
Para quem deseja meditar
Em silêncio sobre deus.
Toma a tua esteira nas mãos
E a estende depois sobre
A terra humilde de fronte
Ao mar: ali te quedarás silencioso,
Verás aves oceânicas, areia diversa,
Luz sem possibilidade de sombra,
E ouvirás, enfim, o som da canção
- Jazes sentado e sério, sereno,
Enfim te entregaste
De olhos fechados.


Ah, não há acústica
Como a acústica do templo
Ensolarado e arejado, do templo
Do lado de fora!
Ouvirás a canção
E pensarás
Sem pensar,
Questionarás
Sem questões:

Existe uma realidade
Além da realidade? Qual a cor
Dos olhos de deus?
Obedeço
A algum tipo de impulso
Selvagem quando escrevo.
Talvez seja isto, não, certamente é isto
Que um cão sente quando uiva longamente
À lua e sofre! É isto que sente o gato
Quando uma crise de amor lhe rasga o peito
E ele grita e rola bruscamente sobre
Os telhados das casas sem se preocupar
Com quem dorme – se dorme é porque
Não entende de amor.

Agora eu sei: sou um animal
Que tem em si a lembrança da selva,
Porém foi domesticado desde muito cedo.
Eu não faço arte, eu rosno! Eu ronrono!
Caço pássaros, não palavras! Só quero saber
De me deitar ao sol, somente me deitar ao sol
Compensa a vida – quero o estômago cheio
E pouco mais que calma.

Obedeço
A algum tipo de impulso
Selvagem quando escrevo:
Vim de uma selva na qual os homens
Nunca pisaram, selva dos poetas, dos embriagados!
Não posso, em hipótese alguma, me ajustar a esta
Cidade, não posso entender os manuais
Formais de literatura, isto é muito
Pra mim... Me deixem
Grasnar e cagar nos cantos,
Sou um bicho: estas roupas de humano
São o caos
E a prisão
Na minha pele...
Para que serviu,
Boabdil, todo o teu esforço?
Suspiraste e depois choraste,
Mas o que dói é que já sabias
Que irias suspirar e depois chorar.
Isto tudo é um absurdo, meu amigo...

Antes tivesses deixado
Que teu pai infiel amasse Isabelle,
Antes não tivesses tentado ser líder
De homens, antes não tivesses,
Escondido, fugido de Alhambra
Com teu irmão não menos desgraçado
Do que tu.

Boabdil, antes tivesses esquecido
Que eras príncipe! Poderias ter
Abandonado a tudo, fugido não
De Alhambra, mas de toda a vida,
Brandido a lâmina não contra a carne
Cristã, mas contra a tua própria.
Isto tudo é um absurdo, meu amigo...

Percebes? Sabias! Sabias muito tempo
Antes, como todo homem minimamente sagaz
Sabe: irias suspirar e, depois, chorar, pois
Que o suspiro e o choro são o destino
De toda a raça. Antes tivesses abandonado
A tudo, ido para as montanhas, virado
Um pastor breve de carneiros serenos...

Que digo? É um absurdo tudo isto!
Ainda assim chorarias e suspirarias:
Qual a diferença entre perder Granada
E um carneiro tresmalhado nas encostas?
O que dói menos? Serias o mesmo infante
Desafortunado, uma vez que ninguém foge
Das lágrimas que os deuses lhe reservam
Desde há muito na ampola do tempo.

Nunca te contentarias, príncipe amado,
Amigo meu, com uma choupana e um forno,
Com pão sovado por mãos simples da tua esposa
Simples, precisavas perder, precisavas suspirar,
Precisavas chorar: não um carneiro, porém um reino...
Sem pensar
Estive no vale.
Verdejava. Se eu pensasse,
No vale eu não estaria. Estar
É estar, pensar não é estar.
O pensamento impede a percepção:
Verdejava – não perceberia jamais
Caso pensasse.

Não levarei ao vale
As minhas tristezas.
Eis: todo pensamento
É uma tristeza. Há um grande
Vão entre o pensamento
E a razão: a razão
Da natureza
É empírica.

O que me importa agora
É ser natureza e sentir
O que sou
Deveras...

terça-feira, 15 de julho de 2014

O olho da madrugada
Talvez tenha um nome.
Pesquiso a redundância
Do silêncio: nada encontro.
Talvez isto seja absolutamente
Muito mais do que posso querer
Da vida.

O olho da madrugada
Certamente tem um nome.
Há mistério por trás do mistério,
Há sussurros por trás dos sussurros.
Alguém deixou aberta a porta, pronto:
Entraram estes pensamentos estranhos
Como cães fazendo farra descontroladamente
Sem que ninguém os consiga enxotar de volta
À rua.

A questão não é a questão,
Mas o motivo da questão. Não me doem
A resposta, não mastiguem a minha comida,
Por favor! Me mostrem, porém, a necessidade
E o fundamento da pergunta. Perguntar
É estar vivo!

O olho da madrugada é uma raiz,
O olho da madrugada é subjetivo e parco,
É uma sombra serena sobre os muros da noite
O olho da madrugada, a cerca que cerca destinos,
A foice que ceifa vida, a flor que germina os ares,
Floresce, amadurece, reproduz e fenece e morre,
Nunca cessa, contudo...

Me doem, agora, se possível,
A cor das perguntas sem motivo,
Das paixões das respostas que nunca terei,
Das paixões das respostas que nunca precisei,
Me doem, agora, e somente isto há de ser
Beleza suficiente para que eu me emocione
E possa pensar que é farta e cômoda
A vida.
Não quero saber
Dos minutos que passam. Não
Quero saber da literatura, das noites
Se desenrolando lindíssimas nas ruas,
Das serenatas, dos sonetos, das gramáticas,
Dos livros de romance. Não quero saber
Das virgens, não quero saber dos poetas velhos,
Das crianças traquinas, da glória da vida. Não quero
Os campos, não quero a luz do sol, as ervas nos cantos,
Os fungos perdidos, as sombras dos pátios, as casas
De madeira da infância. Não quero o cheiro da saudade,
Não me importam as lembranças metodicamente inexatas,
Não são nada senão criações quiméricas, não são nada
Senão um conto muito antigo que se conta
A toda juventude sem exceção. Não quero saber
De inocências, de medos, de delírios, de fôlegos,
De palpitares de peito: há um lugar muito bom
Para tudo isto no fundo de um baú. Há um lugar
Muito bom para tudo isto no fundo do inferno,
No canto das memórias imemoráveis, no subconsciente
Desnecessário e feio.

Afogarei no esquecimento de mim mesmo a poesia,
Todas as namoradas, todos os planos, todas as adolescências
Do mundo material e rude. Não me importo com o que não
Me dá lucro algum: torno a arte uma despreocupação,
Darei a tudo muita beleza, mas não quero pensar enquanto
Trabalho. Que se danem a forma, os conceitos, os argumentos,
As certezas discursadas. Que se danem os estereótipos, as cartas
Marcadas, as purezas tolas e a incapacidade de romper barreiras:
Eis aqui toda a minha subjetividade – nada é necessário, nada é
Insubstituível, construirei a casa da alegria
Com aquilo que me der de bom grado
A vida.

De resto, roubarei, com certeza roubarei
- E sem nenhum arrependimento - do mundo o que for
Necessário à minha alimentação parca e rara: sou um cacto,
Sou um cacto que viverá séculos, ainda que coma pouco,
Ainda que só beba água furtada das chuvas.
Sou um cacto – deixarei da minha pobreza
Desértica umas flores tão lindas, mas tão lindas,
Que será improvável que acreditem os céticos
Que nasceram elas entre tais espinhos:

Fazer muito
Com o pouco
Que se tem
É o dom
Dos sábios.
Mistério do silêncio
Das manhãs cálidas
Do meu pátio amigável:
Qual segredo carregam
Nos bicos os pássaros,
Qual conhecimento
As plantas têm no verde,
Qual a idade, quantas coisas
Viu a terra dos meus canteiros,
A terra logo embaixo
Dos meus pés?

Ah, mãe que me abrigarás novamente,
Cobertor do meu cadáver frio,
Sábia nos rituais iniciáticos da morte:
Como o mestre fez com o pão e o peixe,
Quantas bocas alimentarás
Com minha carne e meu sangue?
Ah, terra que irás me abrigar,
Podes perceber a beleza que há
Em deixar pra trás a fantasia,
Em despir a máscara quando se acaba
O baile de máscaras e sabemos, suspirantes,
Que nada é pra sempre, mas que o fim das coisas
É uma delusão desinteressante?

Mistério do silêncio
Das manhãs cálidas como carícias
De uma moça na minha face,
Como as mãos de uma moça,
Suaves, na minha face...
Confio no mistério como quem estás prestes
A receber um beijo! O silêncio é o bastante!
Se a face desnuda de deus não foi capaz
De assustar aos pássaro, criaturas tímidas,
Por que assustaria eu, que sou tão criatura
E tão tímido quanto? Encaro meu pátio
E suas incógnitas: candura da natureza,
És brusca e divina, leve, sem pressa
- E eu um tolo que ousa
Questionar motivos...

Mistério do silêncio, vou me deixar levar,
Pois cada dia que vem é único, não volta,
E estas manhãs passarão com todo seu significado
Oculto e sua matéria palpável. Ser é passar:
Eu passo, por isso fico, e me dou
À terra aos poucos.
Há duas raças
Dentro de uma raça,
Há dois momentos:
Um que ergue prédios altos,
Um que olha flores e chora.

Há dias que percebo: o homem
É diferente do homem. Há muitos
Dentro de muitos. Há múltiplos
Dentro de múltiplos: talvez
O universo, a realidade, deus,
A essência, tudo isto seja apenas
Reflexos de reflexos dentro de reflexos,
Um túnel de espelhos sem fim,
Uma ilusão de ótica impossível.

Há diversidade em tudo, tudo é possível:
Quem percebeu os caminhos da natureza
De fato, quem disse que é como é por ser?
Há razão escondida na métrica da existência,
E a razão em si é um rio com muitos afluentes...

Há duas raças dentro de uma raça, homens, como tudo,
São diferentes dos homens. Cada ser é um ser, porque ser
É uma tarefa muito íntima, é um fardo extremamente sacro,
É um dever que não cabe ao outro cumprir: ser lapidado por mãos
Menos hábeis que a do mestre lapidador é a tristeza dos diamantes
Raros.

Cada pedra é única: há várias pedras na família das pedras.
Cada rio é único: há muitos rios na família dos rios.
Cada dia é único: há muitos dias que tenho percebido
A alma que está escondida acima da pele sensível
Do mundo. Aprendo com tudo. Sou grato.

Sapiência divina, organismo organizado não se sabe por qual força,
Raciocínio natural, o que nos trouxe à vida? Me permita
Por um segundo a ousadia, a rebeldia, o narcisismo de quebrar
Este espelho que reflete a luz que há e constrói, com esmero,
Tudo o que vemos com o corpo inteiro como um olho,
Tudo o que sentimos com a pele toda, a pele da vida,
Tudo o que farejamos com o instinto animalesco que
Nos habita como habita a natureza justa e impostora,
Me permita quebrar este espelho sagrado na hora sagrada
Da morte: o que busco é a paz inexplicável dos santos anônimos.
Eu queria
A coragem
Necessária.

Eu queria
Olhar todos
Nos olhos.

Eu queria
A verdade
Suprema.

Eu queria
A alegria
Qual flor:

Colheria
As lindas
Cores no campo,
Alargaria as terras,
Suprimiria as mágoas,
Inundaria os rios
Comigo mesmo.

Eu queria
A coragem
Necessária,
Eu queria
A sabedoria
Suprema.

Saber muito:
Saber pouco.
A inteligência
Não como fardo,
Mas alívio, alívio,
Alívio supremo
Às todas ardências
Que eu sinto,
Às dores que
Me corroem
Como a ferrugem
Ao ferro, às melancólicas
Horas destes dias estranhos
Nas quais eu cai sem saber de onde...
Mário de Sá-Carneiro, amigo
Que eu não conheci: eu sou como tu,
Me sinto como tu te sentias, quero algo
Que está além de todas as possibilidades.
Mário de Sá-Carneiro, grande entre grandes,
Eu sou como tu, amigo que não conheci:
O que me falta ainda são os cinco frascos
De estricnina e um bairro tão elegante
Quanto Montmartre para poder morrer.

Ah, meu amigo, eu quero tentar, como quero!
Sei, porém, que muitos tentaram como eu não tento:
Perderam, estão todos muito distantes de tudo
Aquilo que conhecemos agora, tentaram!
As vísceras, intuitivas, Mário, palpitantes:
Todos eles sabiam que deus guarda cinco
Frascos de estricnina para cada membro
Desta nossa raça de trágicos, todos eles sabiam,
Principalmente os poetas sabiam, como tu sabias
E eu sei... Ah, Mário, a lírica é uma desnecessidade
Que não fala nada com nada... A ninguém importa
A poesia que não seja a poesia de sua própria vida
- Ou a poesia de gigantes em quem, sem outras possibilidades,
Procuramos nos espelhar.

E tudo isto é falso como a maquiagem de uma puta triste:
Uma hora serão removidas todas as cores que a luz dá,
A face da tristeza há de se converter resplandecentemente
Na face da verdade que tanto amamos sem conhecer.

Mário, amigo querido que nunca conheci:
Em breve nos conheceremos e, entre goles alegres
De qualquer bebida amarga que tu gostes e que me mate,
Me contarás que houveram também alegrias
Enquanto vivias.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Escrever
Por escrever, amar
Por amar, flores
Que brotem por brotar
Apenas: não me vejam,
Não sou nada, meus versos
São tudo.

Se preocupa a rosa
Em saber se alguém a vê?
É bela, ainda assim.
Sem motivos à beleza,
Porém, senão ser bela
E exalar o que é.

Ah, me deixem ser como flores!
Me deixem ser como flores
Que mostram pétalas lindas:
Se as olhares de perto saberás
Dos muitos rasgos nas fibras
Comidas por insetos, das securas
Dos verdes que não podem ser
Analisadas senão de perto,
Das tristezas de um outono que virá
E de um inverno longo após.
Se olhares de perto, saberás dos muitos
Defeitos: são tantos, inúmeros, que são o mesmo
Que nenhum, a soma tão grande
Que é igual a zero. Ao conjunto de defeitos
Chamamos perfeição.

Ser por ser apenas. Ser com tamanha profundidade
Que não diria ser, mas estar. A possibilidade de tudo isto:
Eis aqui a verdadeira beleza e a verdadeira perfeição.

E lembremos a figura daquele monge do oriente distante,
E lembremos que ele passou toda uma vida procurando a flor
Sem imperfeições, e não esqueçamos que quando ele morria
Lentamente em meio a um jardim de cerejeiras percebeu:
São perfeitas todas elas.

Fareje as flores, não olhes, porque são enganos
Os olhos. Fareje as flores, não olhes por um segundo sequer:
Serás inteiro tomado pelo perfume que nunca percebeste e,
Por fim, perceberás.
Da terra muito distante
Da qual eu vim, porém não lembro,
Da terra muito distante
Da qual eu vim, guardo, apesar
Dos pesares, o gosto das frutas que lá
Nasciam e que já não como há séculos.

Ilha longínqua, maré nas praias, sol a pino
- Eis que era tudo belo, e mesmo as tempestades,
Quando havia tempestades, eram graciosas e sutis.
Não temíamos a morte, não enterrávamos nossos mortos:
Lhes dávamos ao fogo, viravam cinzas e fumaça e logo
Estavam atentos às porções mais ínfimas da existência.
Os mortos suspiram! Não só na terra muito distante de onde
Eu vim, mas em todas as covas! Não os ouço aqui como
Já os ouvi, mas sei que falam como mudos...

Através da minha pele
Todas as peles estão ao sol. Um dia,
Será a minha pele que precisará da pele alheia
Para se bronzear: os vivos, os mortos, os que não
Nasceram e, portanto, não morrem: todos são
Um só. Na terra onde eu nasci há milênios,
Na terra onde eu era feliz sem lembrar nada,
Senão a sensação pura de ser feliz: lá cada criança
Sabia do segredo
Da unidade.

Terra amada, fui eu quem te abandonou
Ou tu que me exilaste? Não recordo. Terra amada,
Terra cujo nome eu ignoro enquanto rememoro
O gosto crocante das pedras salgadas de mar,
Terra: havia necessidade de perder de vista as tuas fontes,
Teus aromas, tuas jovens frescas esperando casar
Com os varões determinados que se jogavam às ondas
Para que houvesse peixe em cada mesa
À necessidade exata
Da fome?

O tempo
É mestre de segredos impossíveis, sabe
O que faz: foi necessário, por motivos que me fogem,
Que eu abrisse os olhos e me visse aqui, mas como quero, terra amada,
Retornar as tuas areias imaginadas e morrer
Com a paz que não vivi...
Como negar
Tudo isto?
Aqui estamos.
Ousamos negar.

Aceita, homem, pois que
Isto é o que és: és tudo,
E o tudo inteiro
Te é.

Não pretendo desafiar
A lógica de deus dizendo
Que deus não existe:
Prefiro sentir a mim mesmo,
Prefiro saber que cada centímetro
Disto é a glória acontecendo,
Prefiro imaginar que é este
O caminho da humanidade inteira,
Que vamos todos para o mesmo lugar
E há de ser lindo.

Me arrebate com gentileza,
Eu não vou mais me importar...
Agora,
Não depois,
Agora mesmo
Muito amor, todo
O amor plausível
E implausível! A glória,
A luz, a impossibilidade
De expressar! Amor
Sem medo algum, que transpassa
A pele como um dardo de dentro
Para fora, disparada do coração
Contra outro coração...

E, quando atingindo,
Como sangra! Com enorme
Felicidade: sangra! Com leveza
Divina: sangra! Com o peso do mundo
Inteiro sobre os ombros: sangra...
Sangra por não poder senão sangrar
- Digo que o amor é um rio, as águas
São furiosas mesmo quando calmas,
As margens estrangulam... Não resta
Nada: correr para o final de si mesmo
É muito natural.

Agora mesmo, porém! Agora mesmo é que
Eu quero me acabar, me consumir por nada,
Me destruir de amor, me reconstruir depois,
Inteiramente outro, predestinado a saber
Que este não é o sentimento dos romances apenas,
Contudo é o valor que se dá à alma universal
E é o valor que se recebe de volta.

Me jogo na chama alucinantemente quente,
Deixo que as labaredas me consumam, sou
Um carneiro para o sacrifício muito feliz de ser
Um carneiro para o sacrifício. Deixo que as labaredas
Me consumam, logo estarei disperso, logo poderei
Renascer, logo me restará nada, e tudo o que eu for
Não será.

A alma que me tornarei
Será uma dispersão de cores invisíveis acima
Das cabeças humanas.
Será na integridade, agora mesmo, amor absoluto.
I

Oculta conexão
De caracteres
Vermelhos e vastos
Às portas
Do nascer
Do sol:

O impronunciável
Se chama paz,
A cor é branda
E viva e ilustre
- Aqui, entre nós:
Nada além do burro
Exercício da felicidade
Realmente
Importa.

II

O nome
Das coisas
É vago: vagos
São os momentos
Também.

De que adianta?
Todas as nossas verdades
São ilusões proibidas...

Viver só faz sentido
Quando se vive
Em silêncio
E atenção.

III

A candura escondida
Abaixo da casa dos mortos
É o teu gozo amargo
Na boca da confusão alheia.
Orgulho! Se isto tudo
Não fala sobre orgulho
E teimosia e gesto vago,
Então não sei o que
Estas coisas são...

Impedimentos abusivos,
Canal da carne noturna,
Tortura do corpo
Da alma:

Desde há muito
Esquecemos as boas
Lembranças...
I

Das inúmeras vezes
Que morri, algumas
Foram no meio do deserto.
Todas as vezes que nasci,
Nasci no meio do deserto:
Voltar ao lar é uma questão
De opção na hora da morte.

Já morri engasgado,
Já morri queimado e afogado,
Já me condenaram injustamente
À forca em outra vida, mas também,
Dentre estas inúmeras possibilidades
De fraquezas do ser, já errei confessamente,
Não sem ter sofrido, na hora ou depois, mágoa
E arrependimento. Deus sabe o que faz: só ele e eu
Sabemos o que aprendi com meus erros.

Abram os olhos, meus irmãos, eu imploro no final deste poema:
A vida, apesar de individualmente efêmera, é infinita no coletivo.
Das inúmeras vezes que morri, renasci todas elas. Deus sabe
O que faz.

II

Em outra
Vida fui
Um sufista:
Girei, girei, girei
Em torno de mim
Mesmo e dei de cara
Com uma luz impronunciável:
Eu.

Eis o nome do bem amado: Eu.
Eis o nome de deus, acima de tudo: Eu.
Eis o nome de tudo, acima e abaixo,
Mesmo a possibilidade de tudo: Eu.

Eu sou
O caminho
A verdade e a vida:
Oferto ao mundo minha alegria!
I

O vento
Brando à face:
Saltaste, Ícaro, em direção
Ao fundo do precipício, mas
emergiste, depois, glorioso.
Ah, meu amado, qual melhor
Sensação do que esta? Que melhor
Do que saber que o sol nos aquece
E que seu calor é breve, porém
Ameniza a todas as covas do mundo,
Negramente prontas para o corpo dos homens?
Que melhor, meu amado, do que se sentir
Despido de todas as roupas às mãos
Da brisa cálida e morna?
Brisa deveria ser o rápido nome
De uma deusa
Suave...

Conheceste a escuridão. Para alçar teu voo
Fizeste uso da velocidade da queda, quase tocaste
As trevas do fosso onde o sol não entra – ascendeste,
Contudo: com estupenda velocidade desceste ao quase solo,
Com a mesma velocidade chegaste ao quase sol...
Vês, meu amado? Não vês. Todas as verdades
São meias verdades: o quase sol em nada
Se distingue do quase solo.

Vês? Não vês: eis que a luz cega tanto quanto a escuridão.


II

Se ao menos tivesses ouvido
Ao teu Dédalo, ao teu querido,
Ao teu sagrado, amado, louvado
Dédalo! Ai! Se tivesses ouvido
Este maldito que te trouxe ao mundo,
Se tivesses ouvido o teu local de origem,
A tua carne, o teu sangue, se tivesses entendido,
Ícaro, o caminho do meio:
Nem muito ao sol, nem muito ao mar,
Como te disse
O teu velho...

O que pensaste quando aprendeste a voar?
O homem que percebe as próprias asas
Se julga capaz de tudo... Querias mais luz,
Mais calor, tu que conheceste as trevas, tu
Que quase morreste de frio. Querias o espaço
Aberto que era o oposto de um labirinto,
Querias a glória de Apolo inteiro nos teus braços
- Que conseguiste? Derreteste as tuas asas,
Queimaste tuas penas, caíste efusivamente
Como uma pedra arremessada e, como uma pedra,
Rapidamente encontraste o fundo do mar,
Onde há terra.

Chora, Ícaro, teu pai teus excessos, tua gana, teu vício,
Chora: ele te alertou. Quiseste o que não se pode ter,
Devias ter ficado entre o céu e o mar, nem perto do sol,
Nem perto das ondas. Desejaste: quem quer algo deve saber
O risco de o querer...
Teu corpo caindo
À grande cova das marés
Ensinou uma lição a todos
Nós, meu amado, a todos nós...